Início Opinião Artigos ARTIGO: UMA CRIANÇA ENTRE RITUAIS SACROS, SINOS, IGREJAS E CARNAVAIS

ARTIGO: UMA CRIANÇA ENTRE RITUAIS SACROS, SINOS, IGREJAS E CARNAVAIS

A casa citada no texto, na “rua das fábricas”, atual Avenida Leite de Castro. (Foto: Ramon Coelho)

Tulio de Oliveira Tortoriello *

O fascínio pelas igrejas barrocas, pelas velhas casas coloniais e ecléticas plantadas em irregulares ruas de pedra, pelas imponentes pontes construídas pelos escravos, o encantamento pelas baterias de escolas de samba tocando na escadaria da Matriz do Pilar nos dias de carnaval e pelo toque dos sinos anunciando as procissões, os muitos rituais da Semana Santa e as várias festas de santos que acontecem durante todo o ano na velha e mineira São João del-Rei me acompanham desde meus primeiros anos de vida. Nascido nessa cidade ainda na década de 60 do século passado, me acostumei desde muito cedo a andar pelas ruas observando tudo e considerando o espaço da cidade como extensão da minha casa.

“Nascido nessa cidade ainda na década de 60 do século passado, me acostumei desde muito cedo a andar pelas ruas observando tudo e considerando o espaço da cidade como extensão da minha casa”

Autorizado por meus pais, comecei a fazer sozinho, por volta dos oito ou nove anos de idade, o trajeto entre minha casa e a dos meus avós maternos, o Vô Manduca e a Vó Liquinha, coisa de dez minutos de caminhada. Obrigatoriamente tinha que passar pelo Largo de São Francisco e pela igreja do mesmo nome. Não demorou muito pra elegê-la como a minha favorita. Mesmo depois de contemplar muitos outros templos pelo Brasil e por vários países do velho continente, a São Francisco do Mestre Lima Cerqueira conserva ainda hoje o posto de primeiro lugar no meu ranking particular de belas igrejas!

Talvez seja coisa de apaixonado filho da terra, muito ligado às suas origens. Pode ser. Mas outros fatos foram responsáveis pelo meu atual envolvimento com a cidade, com seu patrimônio histórico, com suas festas religiosas e profanas e com seu povo, grande protagonista dos espetáculos culturais que aqui têm lugar desde a fundação do Arraial de Nossa Senhora do Pilar do Rio das Mortes, primeiro nome da nossa São João del-Rei, por bandeirantes paulistas, nos primeiros anos do século XVIII.

Tradições são-joanenses

Foto: Ronaldo Cardoso (Vu)

Minhas primeiras incursões no mundo das tradições são-joanenses, como as festas religiosas, mas também as profanas, como o carnaval, se devem ao meu avô Manoel, apelidado Manduca, filho de portugueses, nascido em Belo Horizonte, mas são-joanense por destino e escolha. Vô Manduca morava próximo à igreja de São Francisco e em frente à sua casa desfilavam quase todas as procissões da cidade. Ali comecei a vê-las passar. Mas isso não era o bastante.

Queria assisti-las saindo e entrando nas igrejas, com os sinos tocando em ritmo mais acelerado, queria ver os andores passarem pelas ruas coloniais e mais antigas, queria ver o padre rezar e a orquestra tocar música sacra em frente aos “passinhos”, nome popular das seis capelas-passos da via sacra espalhadas pelo núcleo histórico da cidade. Enfim, desejava contemplar todos os detalhes daqueles espetáculos. Mesmo sem conseguir entender bem meus sentimentos, afinal eu era uma criança de menos de dez anos, percebia que aqueles rituais eram muito mais do que apenas manifestações católicas de fé e religiosidade. Para mim, com certeza, eles já tinham um significado muito maior.

E era pelas mãos do Vô Manduca que eu podia assistir a tudo aquilo. Como um típico avô, ainda mais por ser eu o neto primogênito, ele fazia quase todas as minhas vontades. E me levar às igrejas e às procissões eram as que estavam em primeiro lugar. Na mesma época, década de 1970, ele me levava também às arquibancadas da antiga Avenida Rui Barbosa, hoje Tancredo Neves, para assistir aos desfiles de escolas de samba e blocos de carnaval. Mas nesse caso, de início, o desejo era maior dele do que meu.

Segundo relato de minha mãe, ele era um folião de primeira desde os tempos de juventude, ao contrário de minha avó, Maria da Conceição, conhecida por todos como Dona Liquinha, que não apreciava e não gostava de frequentar os festejos carnavalescos. Assim, espertamente, ele me usava como um pretexto bastante conveniente. Levava-me para assistir aos desfiles e aproveitava suas noites de carnaval, degustando os mais variados petiscos vendidos pelos ambulantes – meu avô era também um glutão de primeiro time – ao som das baterias d’ “Os Metralhas”, do “Custa Mas Vai”, da “Depois Eu Digo”, da “Falem de Mim” e da “Qualquer Nome Serve”, minha favorita, dentre outras agremiações carnavalescas da época.

Rapidamente eu me encantei com tudo aquilo. Decorava instantaneamente as letras dos sambas-enredo, muitos dos quais guardados ainda hoje em minha memória, e me emocionava quando as escolas desfilavam diante de nós, naqueles fevereiros de mais de quarenta anos atrás.

Hoje percebo que, naquela época, enquanto antropólogos, sociólogos, filósofos e historiadores começavam a escrever e discutir sobre hibridismo cultural, eu já podia experimentar o fenômeno concretamente. Em São João del-Rei, num prazo de menos de quarenta dias, passamos do repique dos tamborins ao som melancólico dos sinos e das matracas, do cantar dos sambas-enredo ao triste entoar dos cânticos, antífonas e responsórios do Ofício de Trevas, do desfile das alas e carros alegóricos ao cortejo de velas e andores de imagens sacras.

“Em São João del-Rei, num prazo de menos de quarenta dias, passamos do repique dos tamborins ao som melancólico dos sinos e das matracas, do cantar dos sambas-enredo ao triste entoar dos cânticos, antífonas e responsórios do Ofício de Trevas, do desfile das alas e carros alegóricos ao cortejo de velas e andores de imagens sacras”

Eventos tão antagônicos, mas muitas vezes vividos na mesma intensidade, pelas mesmas pessoas que se despem de suas coloridas fantasias de carnaval e se recobrem com os hábitos e opas de cores sóbrias das irmandades e ordens terceiras, nas procissões da quaresma e da Semana Santa. Ter blocos e escolas de samba fazendo suas “concentrações” e tocando suas baterias em frente às igrejas barrocas da antiga Rua Direita, mesmo cenário onde algumas semanas depois a Verônica canta em latim exibindo um sudário com o rosto de Cristo na Procissão do Enterro, é, com certeza, um bom exemplo do fenômeno da hibridação, pois mistura manifestações populares tão diversas e delineia traços de uma identidade multifacetada de uma cidade e de seu povo.

Cultura imigrante

Mas meus momentos de lazer na infância não eram apenas procissões e escolas de samba. Descendente de italianos por parte de pai – meu avô paterno era da vila de Tortorella, no sul da Itália, e minha avó filha de italianos radicados em Lavras, no sul de Minas – definitivamente minha família não era tipicamente mineira.

Meu avô chegou em terras brasileiras no período entre guerras para se juntar a um irmão que já morava em Juiz de Fora. Posteriormente estabelecendo-se em São João del-Rei, o Vô Rodolfo Giuseppe, de quem eu me lembro apenas vagamente e que no Brasil passou a ser apenas José, logo trouxe toda a família: seus irmãos, suas irmãs e seus pais, os meus bisavós. Instalaram-se num grande casarão de estilo eclético na “rua das fábricas”, pois naquela época o Vô José já era um próspero industrial, dono do único curtume da cidade e região.

Ele era, assim, integrante da classe responsável pelo “surto” de desenvolvimento da cidade ocorrido no início do século XX. Logo que se casou foi morar com minha avó num outro casarão, também eclético – as construções em estilo eclético eram uma das marcas do progresso da cidade naquela época – no centro da cidade. Na década de 1960, pouco antes do meu nascimento, o curtume teve que ser vendido e a família passou por uma situação difícil. Mas os casarões foram preservados.

Quando eu não estava às voltas com o carnaval e as procissões, eram nessas duas amplas casas que eu e meus primos nos dividíamos. Divertíamo-nos na enorme horta e no galinheiro do casarão da rua das fábricas, onde moravam um tio-avô, monsenhor Tortoriello, figura de destaque na Igreja são-joanense, e uma tia-avó, a querida tia Assunta, vindos da Itália, juntamente com seus outros irmãos e seus pais, muitos anos antes, chamados por meu avô. No casarão do centro, onde morava minha avó Dina, brincávamos de pique, passávamos os natais e aprendíamos a nadar na piscina dos fundos da casa.

Minha avó era católica fervorosa, mas apenas meu pai e meus tios tiveram que se enquadrar a uma severa disciplina religiosa. Nós, os netos, só tínhamos sua doçura e compreensão. Minha ascendência católica me proporcionou viver sempre em meio a igrejas, sinos, incenso, tochas e andores. Mas, certamente, o meu fascínio sempre foi maior pelos rituais, pelo protocolo, pela forma, enfim, pela cultura das cerimônias e espetáculos.

Vivi intensamente e com alegria a minha infância, e isso se deve em grande parte a ter nascido e vivido em terras são-joanenses. Sempre amei a cidade e seu povo, que faz vivas as ruas, as praças, as pontes, as igrejas. Mesmo desconhecendo, com certeza eu concordaria com as palavras, de 1979, hoje ainda atuais, do historiador da arte italiano, Giulio Carlo Argan, de que “hoje não mais consideramos significativo de valores histórico-ideológicos apenas o monumento, mas também a casa de moradia ou a oficina artesanal e, em geral, mais o tecido do que o núcleo representativo”.

No tempo em que vivo, em que todos nós vivemos, temos o privilégio de poder usufruir de todo um legado deixado para nós por gerações que vieram antes, viveram e tiveram histórias diversas, alegres e tristes, comuns e épicas. Enfim, histórias de vidas.

* Bacharel em Direito pela Universidade Federal de Minas Gerais, Mestre em Letras (linha de pesquisa Literatura e Memória Cultural) pela Universidade Federal de São João del-Rei, com dissertação defendida sobre “Usos sociais do patrimônio histórico e cultural de São João del-Rei”, ex-membro do Conselho Municipal de Preservação do Patrimônio Cultural de São João del-Rei. de 2003 a 2009.

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