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ARTIGO: A VOLTA DO FUTEBOL SEM A DISPUTA DAS TORCIDAS, SEM NECESSIDADE E SEM SENTIDO

Imagem: Esporte foto criado por freepik

Lucas Guimarães *

Na última quarta (8), sob os gritos dos atletas e comissões rubro-negras e tricolores que ecoavam no Maracanã deserto, o Fluminense bateu o Flamengo na disputa por pênaltis, depois de um 1 a 1 nos 90 minutos. Resumindo o regulamento esdrúxulo do campeonato carioca, se o Flamengo ganhasse, o campeonato acabaria, mas não acabou. O Fluminense, assim conquistou a Taça Rio, e enfrentará – neste domingo (12) e na quarta-feira – o próprio Flamengo pela glória de campeão carioca de 2020. Mas o que isso significa em uma chuva diária de milhares de vidas perdidas?

Um Fla-Flu não é sempre um Fla-Flu. O hino do tradicional Bangu, escrito em 1949 pelo carnavalesco Larmartine Babo, diz mais a respeito sobre esse clássico do que a Federação de Futebol do Estado do Rio de Janeiro (FERJ) tem ciência. Diz o hino do Bangu: “Em Bangu se o clube vence há na certa um feriado / Comércio fechado / A torcida reunida até parece a do FlaFlu: / Bangu, Bangu, Bangu!”. E na quarta, o berço do futebol carioca, que tem ao lado de fora um hospital de campanha tentando salvar vidas, recebeu o Fla-Flu mais insignificante e entristecedor da história. Sem a disputa das torcidas, sem necessidade e sem sentido.

Tudo isso por uma pressa de ambição, política e financeira. No Brasil, a pandemia da Covid-19 bate recordes. No momento em que escrevo, mais de 70 mil brasileiros já perderam suas vidas pelo novo coronavírus, e o número continua aumentando na casa de milhares dia após dia. Nesse cenário, há quase dois meses, o Flamengo iniciou uma caminhada para a volta do futebol, contrariando as estatísticas, e a Organização Mundial da Saúde (OMS). Com o futebol voltando pela Europa, a diretoria flamenguista pouco se importou com as diferenças de óbitos e infecções por dia entre o Brasil e a Alemanha, e no dia 20 de maio, o Flamengo liderou o movimento de volta aos treinos.

A pandemia intensificou os laços entre a diretoria do Flamengo e o presidente Jair Bolsonaro (sem partido), o que já existia em 2019. O presidente que desde o primeiro momento subestimou a Covid-19 e se opôs ao distanciamento social. Agora, o clube rubro-negro, graças aos seus gestores, representa o atual governo, e o governo o representa. O Flamengo de Jorge Ben, Neguinho da Beija Flor e Marcelo D2, agora, usado e usando um presidente que é o inverso do Flamengo, é o inverso do povo.

Com a pressão do clube com mais torcida no Brasil, e que vive os melhores dias em campo, a Ferj e os governos do estado e da prefeitura do Rio não só cederam nessa volta inumana, mas a abraçaram. Assim, dia 18 de junho, Flamengo e Bangu retornaram o futebol no Brasil jogando, sem público, no Maracanã. Até agora, 11 de julho, só o campeonato carioca voltou, mas já pipocaram as datas para o retorno do futebol pelo Brasil inteiro. Campeonato mineiro – 26/7, Campeonato Paulista – 22/7, Copa do Nordeste – 21/7, Campeonato Brasileiro – 09/08 e Copa do Brasil 26/8. O ultimato para a volta do tão essencial futebol foi dado.

A máquina do futebol não pode parar. Os clubes precisam de receita. Os times irão falir se continuarem sem partidas. Estes argumentos permeiam o entorno do campo e bola, endossando a volta absurda.

Quando as pessoas que como eu defendem o não retorno das atividades e dizem que essa volta contribui para a normalização de um cenário catastrófico, os entusiastas dessa desumanidade de pronto respondem que não ocorrerá uma normalização, já que os estádios estarão vazios, não terá como fingir que tudo está bem.

O futebol, voltando nestas condições, não dará razão às aglomerações de milhares de pessoas, é verdade. Contudo, os jogos na televisão, para os quatro cantos do Brasil, legitimarão a falácia do “distanciamento vertical” e irão estimular as pequenas reuniões. Se o futebol – com 22 jogadores, reservas, comissões técnicas, equipe de arbitragem, repórteres e cinegrafistas – pode voltar, por que eu manteria essa besteira de home office na minha empresa? Por que eu não posso chamar alguns amigos para tomar uma cerveja aqui em casa? O desfavor que essa volta fará é enorme.

Porém, a questão principal para essas pessoas é a crise financeira no mercado do futebol. Os olhos dos clubes brilham ao ver o dinheiro da televisão ao horizonte. Quanto a isso não há discussão, as incompetências dos dirigentes criam uma dependência de toda e qualquer receita, alguns vendem o almoço para pagar a jantar, outros jantam caviar sem ter dinheiro. Esse cenário não tem sua maior parcela de culpa na pandemia. Assim, não era possível contornar essa questão de algum jeito? A dívida dos clubes com a União é altíssima, ao longo da história houve um refinanciamento de dívidas atrás do outro, juros baixíssimos e a prorrogação eterna de prazos. Mas, agora, que o motivo da falta de dinheiro é entendível na medida que o dinheiro não entra e os salários precisam ser pagos, o governo nada pode fazer? E os empréstimos a custo baixo com bancos e empresas, que os clubes cansam de fazer para “investir na equipe”? E as federações estaduais de futebol, que recebem anualmente um repasse da CBF, estas não podem fazer nada quanto aos clubes pequenos?

E por fim, outro argumento repetido insaciavelmente é de como essa volta do futebol está sendo feita de um jeito seguro, pois os atletas testam para o Covid-19 toda semana. Dos 12 clubes que disputam a primeira divisão do Campeonato Mineiro, 5 (Caldense, Patrocinense, Tupynambás, URT e Villa Nova) rescindiram contrato com todo seu elenco, e 1 (Uberlândia) suspendeu os contratos, ativando-os quando o futebol voltasse. Como estas equipes arcarão com os testes semanais e pré-jogos, se nem os salários dos atletas conseguiram cumprir? O Flamengo, o Atlético-MG, o Vasco, o Palmeiras, o Grêmio, o América-MG, e, até, o Cruzeiro tem condições de testar seus profissionais com periodicidade, mas essa não é realidade da maioria dos times pelo Brasil.

Mas, mesmo com os números de vítimas do coronavírus não abaixando, o futebol vai voltar. Por quê? Não tem significado o 3 a 0 do Flamengo no Bangu. O resultado final, os números, de nada importam. Tudo para no futuro, quando forem vasculhar os dados, ter um campeão no Campeonato Carioca de 2020, ter uma taça a mais na sala de troféus do Flamengo ou do Fluminense, como se 2020 fosse um ano como os outros. Mas não é. Estes são os mesmos que defendem a volta das aulas a qualquer custo, mesmo com estudantes sem acesso à internet, isso para no final do ciclo ter um número no boletim, que significará se passou ou não.

O jogo jogado pelo resultado, sem contexto, sem torcida, sem emoção. É preciso ser realista, o futebol teria que voltar sem torcida em alguma hora. Mesmo a torcida sendo a base do espetáculo, do propósito e do futebol. Mas, enquanto os outros países fizeram por onde para o retorno cuidadoso do futebol, o Brasil vai caminhar na mesma direção, enquanto empilha vidas perdidas diariamente.

  • É estudante de Comunicação Social – Jornalismo na Universidade Federal de São João del-Rei.

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