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TREM DE MINAS: GUIMARÃES ROSA E O CONTO QUE IMORTALIZOU A DOR E A SOLIDÃO DO TREM DE DOIDO DE BARBACENA

O trem de doido que levava os pacientes psiquiátricos para o Hospital colônia de Barbacena, recriado em painel para o Museu da Loucura. Ilustração: Edson Brandão

Najla Passos *

João Guimarães Rosa ainda estava longe de se transformar no monstro sagrado da literatura mundial quando, no dia 24 de abril de 1933, aos 25 anos de idade, desembarcou maravilhado de um trem de passageiros na Estação de Barbacena para assumir um novo trabalho e começar vida nova com a família.

Entretanto, foi um outro trem que cruzava a cidade que ele imortalizou na sua obra, quase 30 anos depois:  o ‘trem do sertão’, como o nomeia, ou o ‘trem de doido”, como ficou mais conhecido ao longo das décadas em que abasteceu de almas o Hospital Colônia, o temível manicômio de Barbacena, do qual muito poucos conseguiram sair com vida.  

O conto ‘Sorôco, sua mãe e sua filha” é um dos 20 que fazem parte do livro Primeiras Histórias, publicado em 1963, como lembra Edson Brandão, pesquisador de história regional, membro efetivo da Academia Barbacenense de Letras e membro correspondente do Instituto Histórico e Geográfico de São João Del Rei.

“O conto é uma soma de experiências e de vivências barbacenenses. Tem a ver com solidão, sofrimento, exílio”, analisa ele, que também é curador do Museu da Loucura e que pincelou da obra uma frase usada por Guimarães para explicar o quanto a ‘Barbacena do manicômio’ era longe para uma certa classe social: “Para o pobre, os lugares são mais longe”.

“PARA ONDE IA, NO LEVAR AS MULHERES, ERA PARA UM LUGAR CHAMADO BARBACENA, LONGE. Para o pobre, os lugares são mais longe”

Guimarães Rosa, trecho do conto Sorôco, sua mãe e sua filha
O diplomata Guimarães rosa. Foto: Agência Brasil

De Cordisburgo a Barbacena

Mineiro de Cordisburgo, Guimarães Rosa ainda era acadêmico da Faculdade de Medicina da UFMG quando teve seus primeiros contos premiados e publicados na revista O Cruzeiro. Mas sua história ainda tardaria a se entrelaçar com a da grande literatura.

Depois de formado, ele atuara como médico voluntário da antiga Força Pública (atual Polícia Militar), na Revolução Constitucionalista de 1932, ao lado de outro mineiro com quem firmou forte amizade, o futuro presidente da República, Juscelino Kubitschek.

Terminada a campanha, foi demitido. E quando a Força Pública abriu concurso, em 6 de janeiro de 1933, conforme consta no Diário Oficial do Estado, se inscreveu para a vaga. Na edição de 25 de fevereiro daquele mesmo ano, o jornal oficial noticiava que o escritor havia sido aprovado em 4º lugar, com média de 65,49 pontos.  

Dois meses depois, ele chegava à Barbacena para assumir o posto de capitão médico do Nono Batalhão de Caçadores da Força Pública de Minas Gerais, hoje 9º Batalhão da Polícia Militar de Minas Gerais (9º BPM). De acordo com a assessoria do 9ºBPM, em 14 de maio de 1934, Guimarães Rosa foi finalmente nomeado capitão médico por ato do interventor do Estado, Benedicto Valladares. No dia seguinte, foi incluído no efetivo da Força Pública.

Segundo Edson Brandão, sua primeira esposa, Lygia Cabral, e sua filha Vilma, se mudaram com ele para Barbacena. Primeiro, a família morou no Grande Hotel, na Rua 15 de Novembro, e depois se estabeleceu no número 57 da Avenida Bias Fortes, onde mais tarde nasceria sua segunda filha, Agnes. Demolido, o casarão deu lugar a um grande edifício.

“Aqui ele era o Capitão Rosa do então Nono Batalhão de Caçadores da Força Pública de Minas Gerais. No prédio do IFET onde funcionou a Escola de Aplicação da Unipac e a Escola Estadual Adelaide Bias Fortes, ele atendia os praças e, eventualmente, emitia atestados de saúde para os candidatos a um emprego na Fábrica Ferreira Guimarães”, afirma Brandão.

Clima propício às grandes amizades

O pesquisador conta que, na tranquilidade de Barbacena, desfrutando do seu clima ameno, bem diferente do sertão de onde veio, Guimarães Rosa cultivou amizades marcantes para sua vida. Além do médico Oswaldo Fortini, se relacionou com Durval Nascimento, Raul Floriano e Honório Armond que, segundo o estudioso , ofertava aulas de francês ao futuro diplomata.

“Sua facilidade com línguas estrangeiras aproximaram o médico e militar circunstancial da diplomacia. Outro amigo feito em Barbacena, Geraldo França de Lima, foi quem lhe mostrou o edital para o Concurso do Itamarati.  Em um bilhete para o colega barbacenense Oswaldo Fortini, Guimarães Rosa revelou o esforço insano que foi a maratona de provas para o ingresso na diplomacia e sua gratidão por Fortini cobrir sua ausência nos plantões do quartel”, relata.

Nos registros do 9º BPM, consta que, em carta datada de 20 de março de 1934, ele revelou ao amigo Pedro Moreira Barbosa sua repugnância a qualquer “trabalho material”. No documento histórico, ele afirmava encontrar satisfação apenas no terreno das teorias, dos textos, do raciocínio puro e dos subjetivistas. Com a aprovação para o Itamaraty, foi exonerado a pedido da carreira em Barbacena pelo interventor Benedito Valadares, em documento datado de 8 de agosto de 1934.

O pesquisador de história regional, Edson Brandão. Foto: Arquivo pessoal

A diplomacia na Alemanha nazista e a literatura

Entre 1938 e 1942, Guimarães Rosa foi cônsul-adjunto do Brasil em Hamburgo, na Alemanha nazista, onde conheceu sua segunda esposa, a funcionária do Itamaraty Aracy de Carvalho, conhecida por ajudar judeus a fugirem do extermínio nos campos de concentração, ao emitir mais vistos do que as cotas legalmente estabelecidas.

Sua obra mais marcante foi escrita em 1956: ‘Grandes Sertões: Veredas’, considerado por muitos o maior romance brasileiro. Mas o conto que crava para sempre a memória do trem de doido de Barbacena no cânone literário brasileiro foi publicado oito anos depois, quando o autor já fazia uma espécie de acerto de contas com sua biografia.

Sorôco, sua mãe e sua filha conta a história de um homem rude e viúvo que, impossibilitado de lidar sozinho com a loucura dos dois únicos membros da família que lhe restavam, toma a difícil decisão de despachá-las se volta para Barbacena, no ‘trem do sertão’, que passava na cidade fictícia da obra às 12h45, impreterivelmente.

Para Brandão, o conto fala sobre a dor da separação, da extrema solidão, da incapacidade de impedir que às “12h45” o trem vai partir para sempre levando quem você mais ama. “O trem pode ser uma metáfora da vida. Todos têm pena de Sorôco, mas ele sofre sozinho”, ressalta.

O pesquisador barbacenense também observa que é curioso que o ato de encaminhar sua mãe e sua filha loucas a uma viagem definitiva para Barbacena coloca Sorôco no centro de um acontecimento social que a todos comove, mas que não muda em nada a condição de doentes das mulheres e nem impede a sofrida decisão do homem de mandá-las para a “lonjura destinada aos pobres”.

“A população do suposto lugarejo onde a família de Sorôco vivia parece ir toda para Estação, mas só assistem o trágico espetáculo. Lembra-nos muito da história do Hospital Colônia, que sempre assombrou a todos, em especial em Barbacena, mas sempre prevaleceu uma certa passividade sobre o lugar. Creio que não foi só em Barbacena, as histórias dos hospícios se repetem, com graus a mais ou a menos de intensidade,  mas se repetem. Para as sociedades modernas os hospícios sempre foram um ‘mal necessário’”, denuncia.

“A população do suposto lugarejo onde a família de Sorôco vivia parece ir toda para Estação, mas só assistem o trágico espetáculo. Lembra-nos muito da história do Hospital Colônia, que sempre assombrou a todos, em especial em Barbacena, mas sempre prevaleceu uma certa passividade sobre o lugar”

Edson Brandão, pesquisador

Guimarães, a loucura e o trem de doido

Conforme a assessoria de imprensa do 9º BPM, não há registro histórico de que Rosa tenha prestado atendimento no Hospital Colônia. Brandao também reafirma a falta de evidências históricas da convivência mais estreita do escritor com o mundo da loucura. Entretanto, pontua que um dos seus grandes amigos feitos em Barbacena foi o médico Oswaldo Fortini, o pai, que seria anos depois diretor do Hospital Colônia. “Mas isso ocorreu quando Rosa já tinha deixado de exercer a medicina”, ressalta o pesquisador.

De qualquer forma, Brandão acredita que a existência do trem de doido impactou as memórias da época do escritor. “Uma lembrança forte  e uma das primeiras impressões físicas de Barbacena para Guimarães Rosa é a chegada à estação. Ele certamente já ouvira falar do trem do sertão, que reservava vagões para os loucos, assim como se dividia em classes os vagões de uma composição ferroviária: para os ricos e os pobres”, ressalta.

A descrição que Rosa faz do vagão dos loucos, com suas grades e colocado no final do comboio, também condiz com as descrições que Brandão se deparou durante suas pesquisas para a criação do Museu da Loucura. Ele destaca, porém, que o aludido ‘trem de doido’ nunca existiu no sentido institucional. “Creio que não haja nenhum documento da Estrada de Ferro Central do Brasil ou da Rede Ferroviária Federal que configure um ‘trem para doidos’, ou a especificação de como deveriam ser as composições que traziam os doentes para Barbacena”, afirma.

Mas o pesquisador que conhece a fundo a documentação que determinou o tom do tratamento dos pacientes psiquiátricos ao longo da história não duvida, em momento algum, que possa existir. “A esquizofrênica burocracia estatal brasileira seria sim capaz de produzir documentos inimagináveis. Vide um ofício que está exposto no Museu da Loucura e que determina que na falta de camas para os pacientes se adote “o leito único” feito de capim! Está lá, com assinatura, carimbo e tudo!”, espanta-se.

Fato é que, apesar da descrição de Rosa corresponder a real, o vagão da sua obra é carregado de valor simbólico. “O trem de doido tem também uma dimensão simbólica, associada à ‘nau dos loucos’ ou coisas assim. E tem a logística da opressão: os navios negreiros, os porões dos navios e os trens onde a Ditadura Vargas conduzia seus presos políticos (vide as descrições de Graciliano Ramos) e os célebres trens nazistas, para os campos de trabalho e extermínio. Estes sim, utilizados com todo o aparato de um governo totalitário, em estado de guerra, operacionalizando uma política racial determinada por leis e regulamentos. Certamente, tudo isso se confunde no imaginário coletivo com o nosso ‘trem de doido’”, atesta.

A Estação Bias Fortes, já demolida, onde o ‘trem de doido” desembarcava os pacientes psiquiátricos que seriam internados no Hospital Colônia de Barbacena. Foto Luiz Alfredo, 1961.

“O trem de doido tem também uma dimensão simbólica, associada à ‘nau dos loucos’ ou coisas assim. E tem a logística da opressão: os navios negreiros, os porões dos navios, os trens onde a Ditadura Vargas conduzia seus presos políticos e os célebres trens nazistas”.

Edson Brandão, pesquisador

A Barbacena sagaz, espiritual e geométrica

Ainda que na memória poética de Guimarães tenha sobressaído a Barbacena do trem do sertão, registros históricos diversos demonstram que ele sempre teve muito apreço pela cidade na qual passou poucos e bons meses.

Brandão lembra que na biografia “O Homem, Guimarães Rosa”, Geraldo França Lima conta que o imortal escreveu em suas da época: “Tomei o noturno em Belo Horizonte com pena de dormir e não ver Barbacena. Mas eis que acordo e corro para a janela abrindo. O trem estava parado na Estação de Barbacena”.  

O pesquisador acrescenta ainda que, em seu discurso de posse na Academia Brasileira de Letras, em 1967, três dias antes de morrer, Guimarães Rosa citou Barbacena diversas vezes. “Ele se refere à cidade como: ‘Sagaz e espiritual Barbacena. Lugar geométrico!’. Mesmo na preparação para a posse, brincava com amigos mais chegados sonhando que a desafinada Banda Lira Barbacenense tocasse uns dobrados na solenidade”, destaca Brandão, questionando em seguida: “O que ele queria dizer ao designar um lugar por “espiritual ou geométrico”? Ninguém sabe”.

Academia de Letras Guimarães Rosa

Para a Polícia Militar de Minas, ter tido Guimarães Rosa no seu efetivo é motivo permanente de orgulho. “A Polícia Militar de Minas Gerais é hoje a única corporação militar do Brasil, senão do mundo, que tem a honra de possuir uma Academia de Letras – e não seria razoável que se escolhesse outro nome senão o de Guimarães Rosa para a mesma”, afirma, em nota.

Além de contar com o criador do personagem Riobaldo de “Grandes Sertões: Veredas”, com assento à cadeira nº 1, na condição de seu Imortal Patrono, a academia da PM também outras personalidades, como Benedicto Valladares, Euclides da Cunha, Cristiano Otoni, Carlos Drummond de Andrade e Juscelino Kubitschek, dentre outros.

Najla Passos é mineira, jornalista, mestra em Linguagens e Literatura Brasileira e diretora-executiva do Notícias Gerais.


2 COMENTÁRIOS

  1. Bela matéria sobre Rosa e não tão bela sobre nossas mazelas. Parabéns, Edson e Najla! Grande Sertão: Veredas está entre os melhores romances da literatura universal – mesmo que escrito em português, embora possa haver argumentos contrários de infiéis leitores.

  2. […] Comparado até os dias de hoje com os campos de concentração nazistas, o Colônia separava seus pacientes por sexo, idade e características físicas. Recebiam constantemente pessoas de fora da cidade, que chegavam à Barbacena por meio de trens. Guimarães Rosa, escritor e médico do hospital por um breve período, em seu conto “Sorôco, sua… […]

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