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CRÔNICA: SOBRE AFETO, PÃO, LINGUIÇA E OUTRAS CONVERSAS

André Frigo
Notícias Gerais

Meu avô, pai do meu pai, não era uma pessoa de muitas palavras, nem de muitos afetos. Não lembro de ter recebido dele um abraço e a imagem que guardo do avô Augusto Frigo é dele sentado no quintal da casa que construiu com muito esforço. Ele tinha uma cadeira, que ficava colocada num ponto estratégico onde em determinada hora do dia batia sol.

Era nesse momento que ele sentava nela, após o banho, com os cabelos brancos e ralos penteados para trás. Ficava sintonizando o rádio procurando uma notícia ou uma música especial. Parecia prestar pouca atenção ao que acontecia em volta dele. Quando alguém ficava mais exaltado, ele tirava os olhos do rádio e sentenciava: “o rapaz tá feroz”. E voltava para seu mundo.

Meu pai, Antenor Frigo, que detestava o próprio nome, cresceu nessa casa, nessa família que lutava com muita dificuldade no dia a dia. Meu avô era operário de fábrica, o salário nunca sobrava para luxos ou desejos. Pelo contrário, o normal era ser confrontado com a penúria, com a falta até de carinho. Meu pai relembrava, sempre, que a tradição na casa era a de que quando um aprontava sobrava palmada para todo mundo. Não sabia dizer se essas atitudes do meu avô eram devido ao gênio ou ao desespero de ter tantas bocas para sustentar.

E “Seu Antenor” formou seu caráter indo descalço para a escola e esperando o irmão chegar da aula para ele pegar o uniforme escolar. Cresceu vendo um osso comprado no açougue e que ficava suspenso em cima do fogão. Durante uma semana esse osso, no final da tarde, era colocado para ferver junto com a sopa. Carne somente no fim de semana – e, geralmente, linguiça. Minha tia Maria sempre parava em frente a vitrine de uma padaria, ficava olhando com olhos gulosos e sonhadores um pão com uma cobertura de creme.

Dessa carência de tudo e de afeto surgiu meu pai e o Pepega. Pepega era um personagem, que conhecia e era conhecido por todo mundo. Que jogava bocha no América, que conhecia todos os botequins da cidade, que contava histórias absurdamente verdadeiras, que sabia educar cães e que vivia num mundo paralelo. E tinha meu pai que era ótimo serralheiro, que torcia pelo Vasco discretamente, que lutava para se encaixar num mundo que ele não entendia. Mundo que ficou mais estranho para ele quando perdeu a aposta que tinha feito para o futuro em Brasília.

Eu e meus três irmãos crescemos tentando entender tudo que se passava com nosso pai. Do pai que levava a gente muito novo para comer mocotó no domingo, que levava para passar o dia no América ou ia para Cantina do Ítalo antes do almoço, onde ele sempre pedia uma cerveja, duas garrafas de refrigerante, azeitona e queijo prato picado. No queijo ele sempre acrescentava azeite e sal. Mas também tivemos de buscar a compreensão do pai que derrotado ficou meio alheio ao mundo. De pouca conversa, a ponto de passar dias seguidos num silêncio absoluto e sem explicação. De pouco gestos de afeto.  

Meu pai morreu cedo. Acho que cansou de brigar com as normas da sociedade. Tenho a certeza de que em algum momento ele desistiu e simplesmente se foi. Poderia ter curtido muito mais os netos que ele tanto amava e que fazia tudo por eles. Depois que ele morreu a gente começou a reconstruir a imagem dele. E as histórias começaram a surgir, as risadas voltaram a acontecer, o neto mais velho sempre trazendo-o para os encontros de família através de suas imitações do avô.

E eu descobri que afeto nem sempre está em um abraço, ou uma palavra de carinho. No meu pai estava em levar comida para a nossa mesa acima de qualquer coisa. De falar dos filhos com orgulho para os amigos. De ser o primeiro a tomar uma cerveja com um filho e lembrar de pedir o queijo prato picado, com azeite e sal. De levantar cedo no domingo para fazer um café da manhã absurdamente farto, com ovo, linguiça, bacon e a gente acordar com aquele aroma invadindo nossos quartos e aguçando nosso apetite.

Fico imaginando meu avô e meu pai nesse mundo tão polarizado de hoje, com as pessoas trocando o afeto por palavras de ordem. Meu avô sentenciando a cada discurso irado que ele ouvisse no rádio: “O rapaz tá feroz!”. Meu pai pensando um jeito de consertar tudo isso, iria trazer para casa pães, salame, linguiças, queijos e um monte de história que ele teria escutado pelas ruas. Quando a gente falasse com ele que não poderia ficar saindo na rua o tempo todo, tenho certeza de que ele diria: “Deixa comigo que eu sei como é!”. Eu sei que ele não ia consertar o mundo, mas ia deixar mais divertido.

1 COMENTÁRIO

  1. Afetos existem,de formas que a gente não entende pela falta de contato físico,um olhar pode aquecer o coração.Assim meu pai demonstrava.

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