Início Opinião Crônica CRÔNICA: A VIDA NOS TEMPOS DE CÓLERA

CRÔNICA: A VIDA NOS TEMPOS DE CÓLERA

Cena do filme Ensaio sobre Cegueira, baseado no livro homônimo de José Saramago, uma distopia sobre a importância de se ter olhos quando ninguém mais consegue ver. Foto: Divulgação

Andreza Cristina Siqueira Coelho*

Minhas costas doem. Foram muitas horas deitada, maratonando séries e lendo artigos e reportagens. Estico meu tronco, as pernas e os braços. Olho, de relance, algumas meninas fazendo time-lapse de posições de yoga no meu instagram. Reflito um pouco e chego à conclusão de que não é para mim. 

Os desejos tornam-se simulacros da vida de uma mulher grávida. Nunca foi tão gostoso e impreterível beber uma Coca, comer um chocolate, fritar uma carne. As prateleiras já se encontram vazias, até as moscas já voam com lentidão, fartas do tédio proveniente do lixo orgânico, que morreu de inanição. É muito fácil matar essas moscas; estão gordas, pesadas, cheias de sangue. Achei que eram só os mosquitos que ficavam assim.

Sem alegria na despensa, é chegada a hora de encarar a solidão das ruas por alguns escassos minutos, afinal, também preciso comer. Só percebo se está frio ou calor, dia ou noite, quando abro as persianas do quarto. As horas passam e não importam. O tempo já não se dá a mínima, despeitado pelos reflexos indiferentes das pessoas trancafiadas. O grão de areia da ampulheta é um adorno, tal qual o fio de água que desce de uma fonte pequena num shopping qualquer.

Devidamente protegido, encaro as ruas em busca de suprimentos. Já não há quase ninguém. Cruzo com uma senhora na rua; nos olhamos de soslaio e seguimos nosso caminho. O plano estava decorrendo bem, mas a velhinha não consegue conter a tosse. O braço e o cotovelo estão na posição correta. Eu abro um sorriso sem graça, tentando passar uma mensagem de “tá tudo bem, tossir é normal”. No entanto, depois de expurgar algumas gotículas possivelmente contagiosas, a senhora me olha como se eu fosse o vilão. Fecha a cara e sai andando. Eu também sigo meu caminho.

Chegando no mercadinho, cumprimento o indiano do caixa. Vestido com máscara e luvas, o vendedor faz todo o processo do troco de forma minuciosa, como se eu estivesse julgando como alta a probabilidade de contágio naquele recinto. Agradeço pelos serviços, coloco a Coca-Cola embaixo do braço e sigo meu caminho de volta para casa. Nesse momento, passa um melancólico ônibus por mim e um passageiro descansa a cabeça apoiando a testa no banco da frente. O veículo encontra-se quase vazio, à exceção de um rapaz, de máscara, sentado na última cadeira, a mais distante do condutor.

O ar ainda não força ninguém a tirar a própria vida, as ruas não estão tomadas por pilhas de ratos mortos, a cegueira branca ainda não acometeu nossas córneas. Respiro aliviada, ainda é o mundo real. – Sua tosse é bronquite, é pulmão de fumante. Ainda não está doente, meu filho. Fique calmo. Um amigo diz ao outro. Subo as escadas, abro a Coca, como um biscoito, ligo a televisão. O cólera profere uma série de bobagens em rede nacional, aplaudido pelo exército de colerinhas que o cercam. Eu suspiro, triste. Minhas costas doem.

  • É estudante de Jornalismo da UFSJ e produziu este texto sob a orientação do professor Paulo Caetano.

4 COMENTÁRIOS

DEIXE UMA RESPOSTA

Por favor digite seu comentário!
Por favor, digite seu nome aqui