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COLUNA AGRIDOCE: GOVERNOS DE ULTRADIREITA INFLUENCIAM E LEGITIMAM ATAQUES A JORNALISTAS

Democracia padece com ofensiva contra imprensa (Imagem: reprodução/YouTube) 
Douglas Caputo

Douglas Caputo*

Os ataques descontrolados do mandatário Jair Bolsonaro (sem partido) contra jornalistas reverberam entre seu exército de seguidores. O caso do repórter cinematográfico agredido em Barbacena, na última quarta (20), é representativo dessa influência negativa que ocorre em torno da construção de figuras míticas que ostentam bandeiras tóxicas para a Democracia.

Há nisso tudo um caráter psicanalítico que pode explicar a pulsão de morte contra a classe jornalística, especialmente durante a pandemia de Covid-19. Apropriada pelos frankfurtianos Adorno e Horkheimer, a teoria freudiana é revisitada a partir de dois mecanismos de defesa que atuam juntos, no inconsciente daqueles que idolatram o mito e reproduzem sua performance.   

Diante da proeminência mística do líder, os indivíduos podem desenvolver artifícios de identificação e projeção, os quais simulam o comportamento da figura pública. Seus atos e discursos são internalizados e naturalizados por seus adoradores, que passam a disseminá-los dentro de contextos autoritários, totalitários, haja vista o sucesso das propagandas nazifascistas europeias.   

Isso significa que as personagens envolvidas na penalização dos jornalistas encontram-se numa relação fetichizada com o ídolo delatado pela mídia. Ora, alguém precisa ser punido pela desmistificação do bolsonarismo, o que converte repórteres em alvo de sujeitos que tomam as dores do mandatário como suas. Metáfora clara do julgamento obscuro de Josef K. na obra “O processo” (1925), de Kafka.     

Não é difícil perceber que a perseguição aos jornalistas corresponde ao desejo desenfreado de negar que o “herói” pode trazer em si o seu oposto. Contudo, esse não é um privilégio do regime bolsonarista, já que a América Latina enfrenta um reacionarismo frente às Democracias jovens e frágeis, as quais dependem, sobremaneira, de uma mídia independente para se manterem como tais.    

Conforme levantamento do periódico Voces del Sur, rede latino-americana que reúne entidades de classe de países dessa região, o recrudescimento da liberdade de imprensa tem como pretexto a Covid-19. Na Guatemala, a publicações estão oficialmente sujeitas à censura. Já em Honduras, Peru e Venezuela há pelo menos 18 casos de detenções arbitrárias de profissionais de comunicação desde a chegada do vírus, em fevereiro passado. 

O relatório completo foi traduzido e disponibilizado em português pela Associação Brasileira de Jornalismo Investigativo. O documento coloca o Brasil em segundo lugar no número de violações contra jornalistas, a Venezuela lidera o ranking. Os regimes de ultradireita e seus ataques à imprensa atualizam a “banalização do mal” de Hannah Arendt, para quem a violência é um ato burocrático que repete ordens do Estado.  

Inconstitucional     

Dor pungente não é esperança vã (Foto: Sinvaldo Leung)

Além de ferir o Código Penal, quando um chamado “cidadão do bem” agride um jornalista, ele também golpeia a Democracia. Isso porque a violência física ou simbólica contra a mídia incinera a Constituição Cidadã de 1988, promulgada para ser a bússola da nação após 21 anos de obscurantismo do regime militar.

Constituição, aliás, que virou engodo nas mãos de patriotas diletantes. Conforme prevê a Carta Magna, a atividade de Comunicação é livre e independe de censura ou licença. Além disso, a informação não deve sofrer qualquer restrição política, ideológica e artística, embora não seja esse o painel observado no trabalho de campo da mídia.  

Mas, esqueça o texto constitucional. Um país governado por decretos unilaterais, pelo “cala boca jornalista”, pelo tapetão ministerial não tem tempo a perder com essa baboseira de Constituição, coisa de comunista. Pode descer o porrete mesmo, esbraveje Globo Lixo, escolha seu jornalista preferido para tomar uma sova diária. 

O verde-amarelo desses “cidadãos do bem” padece de daltonismo social. Na política da pós-verdade, imperam os atos criminosos contra quem ousa trabalhar com fatos. Até Regina Duarte, fritada no tacho do bolsonarismo, ignora a relevância de nomes que lutaram para a reabertura democrática do país na década de 1980.

Na desastrosa entrevista à rede CNN Brasil, Regina não fez a menor questão de dar condolências à família do compositor Aldir Blanc, morto pela Covid-19 no início de maio. Em parceria com o cantor João Bosco, Blanc compôs “O bêbado e a equilibrista”, hino do movimento “Diretas já”, que culminou com a saída dos militares do Governo Central. 

Não por acaso a canção virou trilha do documentário “Vlado, 30 anos depois”. A narrativa traz personagens que contam a história do jornalista Vladimir Herzog. Preso pela ditadura militar, ele foi morto em um quartel do Exército de São Paulo, em 1975. Na época, fotos divulgadas de Herzog enforcado pretendiam simular um suicídio. 

Versão que durou, oficialmente, até 2012, quando a Justiça reconheceu a morte como assassinato. O contexto de extermínio de Vlado é emblemático da relevância de manutenção da Democracia e de Liberdade de Imprensa em tempos que a pós-verdade deixa prevalecer os sentimentos em detrimento dos fatos. 

As palavras têm poder e intimidam. Bastou uma carta contra os abusos do governo para que o maior patriota da literatura brasileira fosse considerado um traidor. “O triste fim de Policarpo Quaresma” não há que se repetir, já que “eles” não vão conseguir nos calar. 

Mesmo que, como no livro de Lima Barreto publicado em 1915, enviem repórteres para a Ilha das Cobras, reduto final de Quaresma, nós, os jornalistas, continuaremos nossa missão. 

A propósito, nem precisa mandar ninguém para ilha alguma, já que as cobras estão aí, aos montes, armadas para o bote escancarado e certeiro não só contra os trabalhadores da imprensa, mas a quem ousar opinião diferente àquelas do mandatário.         

Redação Douglas

*É jornalista, mestre em Letras e professor de redação no curso SOU1000.

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