Início Opinião Artigos COLUNA AGRIDOCE: GOVERNO DISTRIBUI E ESPERTINHOS PENETRAM AUXÍLIO EMERGENCIAL

COLUNA AGRIDOCE: GOVERNO DISTRIBUI E ESPERTINHOS PENETRAM AUXÍLIO EMERGENCIAL

O que vale mais na pandemia? (Foto: Douglas Caputo)

Douglas Caputo

Douglas Caputo*

Reza a lenda que os brasileiros têm fetiche pela penetração. Calma, calma! Melhor explicar para não gerar duplo sentido, as palavras são perigosas e conotam muitos significados. É preciso domesticar os vocábulos, senão o tiro pode sair pela culatra, sem trocadilhos, por favor.

Em março, ao anunciar o Auxílio Emergencial em decorrência da pandemia de coronavírus, o Governo Federal trepou na cerca e esbravejou, “Vem pra Caixa você também”! E povo foi. Afinal de contas, quem não gosta de uma onça ou uma garoupa nos fundilhos? Só que a caixa ficou apertadinha por causa do vuco-vuco de penetras.

Sem tomar medidas de prevenção contra quem entra sem ser convidado, a liberação rapidinha do Programa deu no que deu: uma libertinagem ‘pra geral’ gozar dos R$600. Conforme a Controladoria-Geral da União (CGU), entre as quase 60 milhões de pessoas que solicitaram o Auxílio, pelo menos 160 mil molharam o biscoito indevidamente.

Há de tudo um pouco no meio dessa moita: sócios de empresas com funcionários cadastrados no Programa, doadores de campanha eleitoral, presidiários, donos de carrões que custam mais de R$60 mil, proprietários de embarcações e até pessoas com conta bancária no exterior.

Dia desses, ouvi por acaso a conversa de duas senhoras distintas, que conheço de vista e profissão. “Nossa, consegui o dinheiro do Governo. R$1,2 mil por mês”! Imediatamente à comemoração, uma delas pegou o celular e confirmou: “Vai dar R$3,6 mil nos três meses”. Uma volúpia só em plena praça pública. 

O valor maior da já não mais Lolita é porque ela se enquadrou no Programa como mãe e chefe de família. Não sei porque, mas tinha quase certeza que aquela balzaquiana era casada. Vai saber?! Não gosto de mexericos nem de caluniar o outro, mas não tive como segurar o segredinho das nobres damas.  

Enquanto as damas festejam, o Governo chora de arrependimento. Isso porque o mandatário Jair Bolsonaro (sem partido) sancionou mudança na lei que instituiu o Auxílio. Quem ultrapassar o limite do Imposto de Renda (R$ 28.559,70 por ano) terá que devolver o benefício, integramente, em 2021. 

Mas, quem está errado nessa situação, os penetras ou Governo? Os dois, sem pôr nem tirar, aliás, um pondo e outro tirando. Os espertinhos erram porque agem de má-fé quando não precisam do dinheiro extra, o Governo, por ser ineficiente ao deixar passar quem não necessita da ajuda emergencial.  

Em mãos erradas, Auxílio deflora cofres públicos (Foto: Marcello Casal Jr / Agência Brasil)

Daí o rombo é inevitável. Estimativa inicial do Ministério da Economia, capitaneado por Paulo Guedes, apontava que o Auxílio ia custar R$15 bi aos cofres públicos. Depois, o valor passou para R$98 bi, ainda insuficiente. Calculado novamente, o montante chegou a R$124 bi. Na última terça (26), os recursos liberados já batiam a cifra de R$152,6 bi.

Claro que a situação é urgente e não pode ressaltar outra característica nacional: a procrastinação. “Para o brasileiro, os atos fundamentais da existência são: nascimento, reprodução, procrastinação e morte (esta última, se possível, também adiada)”, escreveu Paulo Mendes Campos, na crônica “Brasileiro, o homem do amanhã”, de 1964.

O amanhã, que virou hoje, continua procrastinado, já que cerca de 10 milhões de brasileiros, segundo a Caixa, não receberam a tão aguardada mensagem de aprovação do Auxílio. Se era para ser emergencial, virou pós-emergencial. Um bilhete premiado que muitos ainda esperam brilhar na tela do smartphone.  

Procrastinação e desordem. Muda o governo, mas o governo não muda. Segue a “balbúrdia”, agora com a vantagem de culpar os sistemas digitais pelos erros. Retomem o ábaco, varem a noite com bolinha pra cá e pra lá. Que o sono não roube a atenção dos critérios seletivos, senão vai continuar a penetração que arromba o dinheiro público.  

Como diria Campos, “só a morte e a promissória são, mais ou menos, pontuais entre nós [brasileiros]. Mesmo assim, há remédio para a promissória: o adiamento bi ou trimestral das reformas, uma instituição sacrossanta no Brasil”, ironizou o cronista que estudou o antigo segundo grau em São João del-Rei.   

“Jeitinho”

O jeitinho para garantir ‘um’ na crise (Foto: Marcello Casal Jr / Agência Brasil. Montagem: Douglas Caputo)

Aquilo que é consagrado, continua. Não. Não me refiro à postura do brasileiro, mas à antológica obra “Raízes do Brasil”, de Sérgio Buarque de Holanda. O autor desenvolve o conceito de “homem cordial”, nossa herança da colonização ibérica, baseada no patrimonialismo e sua capacidade de encabrestar o povo com pequenos mimos. 

Em uma palavra, o brasileiro cordial estabelece suas relações por meio de trocas de favores entre membros de diferentes classes sociais, cujo objetivo é preservar o status quo. Em bom português, compram-se os mais pobres a favor de algum interesse que favoreça a elite.       

Esse troca-troca promíscuo entre os tupiniquins foi retomado pelo antropólogo Roberto DaMatta. Ao falar do “jeitinho brasileiro”, para o bem ou para o mal, o autor concluiu que a brasilidade tem como um de seus pilares o caráter criativo para, digamos, desvirginar a ordem estabelecida.

O jeitinho “se constitui num modelo obrigatório de resolver aquelas situações nas quais uma pessoa se depara com um “não pode” de uma lei ou autoridade e – passando por baixo da negativa sem contestar, agredir ou recusar a lei, obtém aquilo que desejava, ficando assim “mais igual” do que os outros”, explica DaMatta.

Tão nacional, o jeitinho virou sinônimo de malandragem. Conforme salientou a CGU, há uma horda de 160 mil brasileiros dando o seu jeito para também se deleitar com o Auxílio Emergencial. Se o Governo for “cordial” a todos os penetras, com as três parcelas do Programa, lá se vão R$288 bi. 

Paulo Mendes Campos, em outra crônica de 1964, “Dar um jeitinho”, reafirma a vocação do brasileiro para contornar o incontornável. Atributo que deveria servir de prova para estrangeiros que pretendem se naturalizar no país. Se bem que é mais fácil encontrar gente querendo sair do que entrar. De qualquer fórmula, sempre se tira uma forma.  

“Dar um jeito é um talento brasileiro, coisa que a pessoa de fora não pode entender ou praticar, a não ser depois de viver 10 anos entre nós, bebendo cachaça conosco, adorando feijoada e jogando no bicho. É preciso ser bem brasileiro para se ter o ânimo e a graça de dar um jeitinho numa situação inajeitável”, será, Campos?  

Redação Douglas

 

*É jornalista, mestre em Letras e professor de redação no curso SOU1000.

Os artigos e colunas publicados não refletem necessariamente a opinião do portal Notícias Gerais

2 COMENTÁRIOS

  1. Ainda, somos e estamos, animados e graciosos, a dar um jeito, neste governo inajeitável? Será, mestre Douglas?
    Parabéns pelo belíssimo e ilustrativo texto.

  2. Com irreverência, criatividade e bom humor , Douglas Caputo descreve um comportamento que, historicamente, ficou conhecido como Lei de Gerson, a tática brasileira de tirar vantagem nas diversas situações e eventos. Ou, seja, os fins justificam os meios, mesmo que esses meios não sejam nada éticos ou nobres! Excelente matéria!

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